• Português
  • English
  • Español
  • info@laclima.org

    LACLIMA Paper Series

    Justiça climática na gestão de resíduos sólidos 

    *André Castilho e **Carolina Mota

    Desde o início de 2023, muito tem sido falado do compromisso do governo federal em dar continuidade nas políticas públicas de resíduos sólidos com uma perspectiva social ao tema, através de ações que deem protagonismo aos catadores e às catadoras de materiais reutilizáveis e recicláveis neste processo. 

    Nesse contexto, a ideia de justiça climática passa a ser mais debatida na gestão de resíduos sólidos. De forma sucinta e muito objetiva, o conceito demonstra que diferentes pessoas são impactadas pelos efeitos das mudanças climáticas de diferentes formas e em diferentes intensidades, proporcionalmente às desigualdades a que estão sujeitas. Para além de pensarmos em justiça climática sob o viés das pessoas impactadas pelas alterações do clima, devemos pensar também sob o viés da ampla participação daquelas que contribuem para o combate às mudanças climáticas.

    Assim sendo, na gestão de resíduos sólidos no Brasil, os recentes Decretos nº 11.413 e nº 11.414, publicados em 13 de fevereiro de 2023, reforçam a justiça climática tanto no amparo legal quanto na efetivação das políticas públicas. Tais diplomas implementam uma perspectiva presente já na Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) que, em 2010, incorporou uma dimensão social na temática ao dispor como seu objetivo a integração das catadoras e dos catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis no gerenciamento de resíduos e na responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos.

    Do ponto de vista das obrigações do Poder Público, em 2006, o Decreto nº 5.940, hoje revogado e incorporado pelo Decreto nº 10.936/2022, já previa que a destinação dos resíduos recicláveis descartados pelos órgãos e entidades da administração federal direta e indireta deveria se dar para associações e cooperativas de catadores e de catadoras de materiais reutilizáveis e recicláveis. 

    Em relação ao sistema público de coleta seletiva, a PNRS também determina que se deve priorizar a participação de associações ou cooperativas de catadores e catadoras de materiais reutilizáveis e recicláveis, sem, contudo, dar maior profundidade na forma como essa priorização deve ocorrer. Além disso, para a elaboração do Plano Nacional de Resíduos Sólidos, bem como dos Planos Municipais e Distrital, os catadores e as catadoras de materiais reutilizáveis e recicláveis devem ser mencionados nos referidos documentos para a inclusão social e para a sua emancipação econômica. 

    No âmbito do Poder Público, entre os dois novos decretos publicados em fevereiro, merece destaque o Decreto nº 11.414/2023, que recriou o Programa Pró-Catador, revogado em 2022, agora com a denominação Programa Diogo de Sant’Ana Pró-Catadoras e Pró-Catadores para a Reciclagem Popular. O programa tem por finalidade integrar e articular as atuações da administração pública federal, estadual, distrital e municipal voltados à promoção e à defesa dos direitos humanos das catadoras e dos catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis de diversas formas. 

    Dentre elas, o decreto prevê a possibilidade de financiamento público para estes trabalhadores, sendo que instituições como o BNDES, a Caixa Econômica Federal e o Banco do Brasil já manifestaram interesse em criar medidas indutoras e linhas de créditos especiais para fins de construção e ampliação de unidades de recuperação de recicláveis, aquisição de equipamentos e de veículos para coleta e transporte de materiais. O programa ainda tem como objetivo a capacitação, a formação, o assessoramento técnico e a profissionalização destes profissionais, bem como incentivar o seu pagamento por serviços ambientais urbanos prestados, dada a redução dos impactos ambientais e climáticos obtida por meio do seu trabalho.

    Apesar da relevância de todos os objetivos trazidos pelo programa, para que a justiça climática possa um dia se concretizar, deve-se implementar com urgência o objetivo de incentivo à contratação remunerada de cooperativas e outras formas de organização de catadores e de catadoras de materiais reutilizáveis e recicláveis. A mera doação de resíduos, inclusive pelo Poder Público, ainda é realidade no país e discrimina o relevante serviço prestado por esses atores, o qual seria devidamente remunerado se fosse prestado por qualquer outro operador do mercado. Para concretização desse objetivo, o próprio programa prevê, por exemplo, a possibilidade de tratamento favorecido, diferenciado e simplificado para a contratação pública destes profissionais. O ente aderente ao programa ainda deverá apresentar plano de ação, que deverá contemplar o planejamento para que os objetivos do Decreto nº 11.414/2023 sejam atingidos.

    Outra importante novidade para a justiça climática trazida pelo Decreto nº 11.414/2023 foi a criação do Comitê Interministerial para a Inclusão Socioeconômica de Catadoras e Catadores de Materiais Reutilizáveis e Recicláveis, responsável pelo planejamento, monitoramento e articulação do novo programa, podendo contar com a participação de representantes de catadoras e de catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis para acompanhar suas atividades e participar de grupos de trabalho. Apesar de esses atores não serem membros do Comitê, a possibilidade de sua participação na construção das políticas públicas que os afetam já representa importante passo para a justiça climática, a ser aperfeiçoado.

    Saindo da esfera pública e partindo para o setor privado, tanto nas previsões do plano de gerenciamento de resíduos sólidos (PGRS) quanto no âmbito da logística reversa, a PNRS e seu regulamento sempre trataram a participação das cooperativas e associações de catadores e de catadoras de materiais reutilizáveis e recicláveis como uma possibilidade e não como uma obrigação. Essa possibilidade até foi transformada em uma prioridade, com a assinatura do Acordo Setorial para Implementação da Logística Reversa de Embalagens em Geral, em 2015, porém novamente de forma genérica, sem qualquer indício de como essa priorização ocorreria.

    Foi o Decreto nº 11.413/2023 que trouxe, pela primeira vez, a implementação efetiva de uma priorização da participação desses atores na logística reversa, mas ainda restrita a uma única forma de cumprimento das obrigações empresariais. Isso porque, apesar de possuir algumas regras gerais para a logística reversa, o mencionado decreto prioriza a atuação de organizações de catadores e de catadoras nas operações com certificados. 

    Nessas operações, o setor empresarial, que possui obrigação legal de garantir que um percentual de seus produtos colocados no mercado seja encaminhado para a reciclagem, ao invés de investir recursos na estruturação de um sistema de logística reversa, pode adquirir certificados de operadores que já realizam tais atividades. Esse certificado é lastreado em dois documentos, a nota fiscal de comercialização dos resíduos e o certificado de destinação final (CDF), este emitido no Sistema Nacional de Informações sobre a Gestão dos Resíduos Sólidos (Sinir). 

    A priorização das organizações de catadoras e de catadores ocorre, então, quando o Decreto nº 11.413/2023 determina que, para fins de emissão dos diferentes certificados por ele criados, deve-se esgotar os resultados de logística reversa oriundos desses operadores antes de que sejam adquiridos resultados de outros operadores da cadeia de reciclagem. Além disso, o mencionado decreto autoriza a utilização de notas fiscais de comercialização de resíduos apenas quando encaminhados para um reciclador final, excluindo atores intermediários da cadeia, com uma única exceção: quando emitida por organizações de catadoras e de catadores de materiais recicláveis, a nota fiscal será aceita quando o resíduo for encaminhado também para um operador atacadista.

    O Decreto nº 11.413/2023 foi ainda o primeiro a institucionalizar os chamados projetos estruturantes de logística reversa, os quais, entre outros requisitos, são aqueles que criam, ampliam ou melhoram a infraestrutura de retorno e triagem de resíduos recicláveis em municípios onde essa infraestrutura seja inexistente ou incipiente. Para tanto, além de terem que comprovar que, pelo menos, cinquenta por cento dos resultados contabilizados por aquele projeto são provenientes de catadoras e catadores, organizados em cooperativas ou não, ainda podem se valer de um benefício de contabilização dos resultados antecipada, denominado certificado de crédito de massa futura, se, e somente se, promover a inclusão socioprodutiva de catadoras e catadores.

     Apesar de claros avanços na inclusão dos catadores e das catadoras nas políticas públicas de gestão de resíduos, contribuindo para a justiça climática nesse contexto, ainda há relevantes desafios a serem enfrentados. No setor público, os objetivos trazidos pelo Decreto nº 11.414/2023 ainda estão longe de ser a realidade no país. Já na logística reversa, catadores e catadoras individuais ainda enfrentam dificuldades para participar dos diferentes sistemas e para emissão tanto de notas fiscais eletrônicas quanto do manifesto de transporte de resíduos.

    A incorporação da dimensão social no gerenciamento de resíduos sólidos veio para ficar. Garantir a justiça climática no gerenciamento de resíduos sólidos implica reconhecer a relevante participação das catadoras e dos catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis, organizados ou individualmente, para o setor público ou para o setor privado. É fundamental o Brasil ter políticas públicas voltadas para esses atores, garantindo sua proteção contra os impactos das mudanças climáticas quando em situação de vulnerabilidade, mas indo além e reconhecendo-os como potentes prestadores de serviços para o combate das mudanças climáticas e para o desenvolvimento da economia circular, além de possibilitar formas de sua participação na concepção das políticas públicas de resíduos. Promover uma política de gerenciamento de resíduos sólidos com justiça social e climática significa potencializar os ganhos tanto para o meio ambiente equilibrado, o clima estável e a inclusão socioeconômica, quanto para o desenvolvimento do país.


    *Advogado especialista em Direito Ambiental, mestrando pela Faculdade de Direito da USP e membro do grupo de trabalho “Resíduos e Clima” da LACLIMA.

    **Advogada especialista em Gestão Ambiental, mestre em Saúde e Meio Ambiente, com atuação nas áreas de direito ambiental, resíduos sólidos e ESG, e membra do grupo de trabalho “Resíduos e Clima” da LACLIMA.

    As opiniões expressas neste artigo são do(s)(a)(as) autor(es)(a)(as) e não refletem necessariamente a opinião da LACLIMA.

    Baixar o artigo

    © LACLIMA LATIN AMERICAN CLIMATE LAWYERS INITIATIVE FOR MOBILIZING ACTION

    Desenvolvido com 💚 pela outlab.