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*Denny Thame
Biodiversidade e clima fazem parte de regimes jurídicos internacionais distintos. Cada um tem a sua convenção quadro, as quais foram assinadas durante a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento em 1992 (a Rio 92). No regime jurídico climático, temos o Acordo de Paris desde 2015; e no da biodiversidade, o recente Quadro Global de Biodiversidade Kunming-Montreal de 2022 (chamada de GBF, pela sigla em inglês). Os dois microcosmos também reúnem os seus especialistas, têm metodologias e conceitos próprios. Mas do ponto de vista prático, estão intrinsecamente ligados.
Não existe possibilidade de um futuro sem emissões de gases de efeito estufa – GEEs -, sem variabilidade entre organismos vivos de todas as origens (dentro das espécies e entre as espécies), bem como sem variedade de ecossistemas. Da mesma forma, a biodiversidade não consegue ser preservada em um contexto de mudanças climáticas exacerbadas.
No contexto da agricultura brasileira, essa simbiose entre os dois regimes fica ainda mais evidente. A principal forma de emissão de GEEs é a mudança do uso da terra que gera desmatamento e o uso da terra com práticas agropecuárias não sustentáveis causando altas emissões de metano, degradação do solo, erosão, escassez de recursos hídricos, perda de biodiversidade das plantas e também dos microrganismos no solo.
Paradoxalmente, essa mesma agropecuária é o setor mais exposto aos riscos sistêmicos que as mudanças climáticas e a perda de biodiversidade trazem para a produtividade. Sem a biodiversidade microbiana, por exemplo, o solo se degrada em pouco tempo, passa a demandar mais químicos, mais água e, portanto, a custar mais caro para o produtor.
A monocultura em larga escala, por sua vez, diminui a defesa natural que a variedade de espécies e os sistemas integrados com floresta, lavoura e pecuária costumam ter a ataque de pragas e a condições climáticas extremas. Além disso, práticas que estimulam a biodiversidade como plantio direto, plantas de cobertura, biofertilizantes e biodefensivos por si só já podem aumentar a capacidade de sequestro de carbono no solo e nas plantas.
O regime jurídico climático é o que evoluiu mais rápido, mas o da biodiversidade está acelerando o passo. Na Convenção sobre Diversidade Biológica – CDB -, foi abordada a inovadora temática da propriedade intelectual decorrente da utilização de extratos oriundos da biodiversidade e do conhecimento tradicional milenar desenvolvido pelos povos indígenas e comunidades ribeirinhas e quilombolas.
A partir da CDB, tanto os recursos genéticos como os conhecimentos tradicionais associados deixariam de ser de livre acesso, e são criados critérios para a utilização mediante distribuição justa dos benefícios decorrentes das patentes e comercialização dos produtos desenvolvidos a partir desses compostos de origem biológica. A preocupação era solucionar o problema da biopirataria e a extração predatória de insumos no hemisfério sul.
Mas a temática persistiu por duas décadas muito disputada e evidenciando pontos de vista controversos sobre a produção e o desenvolvimento de biotecnologia. Por exemplo, por um lado, o uso de produtos biológicos pode levar à inovação para muitos tipos de indústria, gerando empregos e renda, mas, por outro, pode estimular a concorrência desleal, e aumentar muito o preço de insumos importantes para outros setores.
Na prática, é um desafio equilibrar a conservação da diversidade biológica, o uso sustentável de seus componentes, a preservação e repartição justa e equitativa dos benefícios resultantes do uso da biodiversidade.
E particularmente no Brasil, a complexidade é ainda maior, pois o país é ao mesmo tempo provedor e usuário dos recursos genéticos da biodiversidade; portanto precisa proteger os recursos da sua megadiversidade e os interesses dos povos indígenas e das comunidades tradicionais, ao mesmo tempo em que facilita uma abordagem moderna para fomentar a inovação e a biotecnologia essencial para o desenvolvimento do agronegócio no país.
Em 2021, um importante passo adiante foi dado pelo Brasil para uma melhor governança de sua biodiversidade quando o país aderiu ao Protocolo de Nagoya que tinha sido aprovado em 2010 e entrado em vigor a nível internacional em 2014, quando 124 países o ratificaram, de um total de 196 signatários.
A ideia central do protocolo é que o acesso e uso de um recurso genético originário de um determinado país cria a obrigação de repartir os benefícios de forma a contribuir para a conservação da biodiversidade no país de origem. Seu principal objetivo é promover o acesso a recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados,
Agora em dezembro de 2022, um grande salto foi dado pela comunidade internacional com a assinatura do Quadro Global de Biodiversidade Kunming-Montreal, juntamente com mais 5 documentos envolvendo monitoramento, relato, verificação, auditoria, mobilização de recursos financeiros, treinamentos, cooperação técnica científica e o sequenciamento digital dos recursos genéticos. Foram acordados 4 objetivos, sustentados por 23 metas para orientar as políticas e práticas dos governos, mas também da iniciativa privada e da sociedade até 2030.
Claro que agora o desafio continua, pois tudo que foi negociado em Kunming-Montreal precisa ser traduzido em planos de ação e legislações nacionais, e o prazo para os países submeterem suas estratégias nacionais de biodiversidade é apenas no final de 2024.
Uma das principais novidades nesse framework foi, na meta 19, a previsão de estímulo a esquemas inovadores como pagamento por serviços ecossistêmicos, títulos verdes, compensações e créditos de biodiversidade,, medidas que depois foram reforçadas também na OneForest Summit, no começo de março de 2023.
Assim como tem ocorrido com o mercado de carbono, o mercado de créditos de biodiversidade tem muitas complexidades e vai enfrentar muitas incertezas como onde investir, quando há adicionalidade, como medir biodiversidade e como monitorar os benefícios dos projetos nessa área. Para catalizar os volumes de investimentos que são necessários para reverter as perdas de biodiversidade, vai ser preciso uma rápida adaptação dos arcabouços legais, políticos e regulatórios, para viabilizar esse mercado e reforçar a confiança dos investidores para trazer seus recursos para a área de biodiversidade.
Até o momento, estão sendo discutidos dois tipos de crédito de biodiversidade. O primeiro deles seria destinado à compensação (offsetting): compra de unidades de biodiversidade de áreas semelhantes para compensar os impactos negativos que foram causados por uma determinada atividade (seguirão a lógica da compensação ambiental que temos no direito ambiental, mas voluntária, independentemente de exigência legal).
O segundo modelo de crédito de biodiversidade se destina a financiar ganhos reais para a biodiversidade que não estejam ligados a impactos negativos em outro local (mais ou menos como o pagamento por serviços ambientais está desenhado na nossa legislação, só que com recursos da iniciativa privada). Ambos são instrumentos de financiamento para conservação de biodiversidade.
Em termos de comércio internacional, biodiversidade e clima estão sendo conectados aos poucos em torno da pauta da segurança alimentar e da agricultura sustentável, tanto no âmbito das Discussões Estruturadas sobre Comércio e Sustentabilidade Ambiental (TESSD) – uma iniciativa liderada por membros da Organização Mundial do Comércio – quanto pelo Diálogo Florestal, Agrícola e Comercial (FACT), que resultou da COP do clima em 2021.
Reino Unido e União Europeia também estão adotando e outros estão buscando adotar regulamentações para exigir cadeias de suprimentos livres de desmatamento. Essas legislações internas buscam ter efeitos transnacionais, protegendo tanto clima como biodiversidade. Além disso, há uma forte tendência de fortalecer as disposições de sustentabilidade nos acordos de livre comércio e melhorar os mecanismos de participação multistakeholder e de avaliação de impacto.
Ainda falta uma definição mais concreta sobre o que é positivo para a natureza e quais são as soluções baseadas na natureza tanto para a questão climática como de perda de biodiversidade. Outro ponto ainda mais desafiador que desenhar e implementar esses mercados da natureza é como fazê-lo de forma a não deixar ninguém para trás, especialmente os povos indígenas e comunidades tradicionais.
Assim, atingir as metas ambicionadas pelo Acordo de Paris e pela GBF vai demandar um compromisso conjunto entre governo, iniciativa privada e sociedade civil, para interpretar os regimes jurídicos de forma conectada, implementá-los e adotá-los em suas práticas no âmbito regional, nacional, estadual e local.
Este é um desafio que precisa ser enfrentado e com urgência.
*Denny Thame pesquisa bioeconomia circular sustentável na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo e é coordenadora do GT de Agricultura da LACLIMA.
Referência
Os quatro objetivos da GBF foram aqui traduzidos livremente pela autora:
“A: Garantir que a integridade, conectividade e resiliência de todos os ecossistemas sejam mantidas, aprimoradas ou restauradas, aumentando substancialmente a área de ecossistemas naturais até 2050; A extinção induzida pelo homem de espécies ameaçadas conhecidas seja interrompida e, até 2050, a taxa de extinção e o risco de todas as espécies sejam reduzidos dez vezes e a abundância de espécies selvagens nativas seja aumentada para níveis saudáveis e resilientes; A diversidade genética dentro das populações de espécies selvagens e domesticadas, é mantida, salvaguardando o seu potencial adaptativo.
B: A biodiversidade seja utilizada e gerida de forma sustentável e as contribuições da natureza para as pessoas, incluindo funções e serviços ecossistêmicos, sejam valorizados, mantidos e melhorados, sendo restaurados os que estão atualmente em declínio, apoiando o alcance do desenvolvimento sustentável em benefício das gerações presentes e futuras até 2050.
C: Os benefícios monetários e não monetários da utilização de recursos genéticos e das informações decorrentes do sequenciamento online dos recursos genéticos e de conhecimento tradicional associado a recursos genéticos, conforme aplicável, sejam compartilhados de forma justa e equitativa, incluindo, conforme apropriado, os povos indígenas e comunidades tradicionais, e aumentado substancialmente até 2050, garantindo a proteção adequada do conhecimento tradicional associado aos recursos genéticos, contribuindo assim para a conservação e uso sustentável da biodiversidade, de acordo com os instrumentos internacionalmente acordados de acesso e repartição de benefícios.
D: Meios adequados de implementação, incluindo recursos financeiros, capacitação, cooperação técnica e científica, e acesso e transferência de tecnologia para implementar plenamente o Quadro de Biodiversidade Global de Kunming-Montreal sejam garantidos e acessíveis equitativamente a todas as Partes, especialmente as Partes que sejam países em desenvolvimento, em particularmente os países menos desenvolvidos e pequenos Estados insulares em desenvolvimento, bem como países com economias em transição, fechando progressivamente a lacuna financeira da biodiversidade de US$ 700 bilhões por ano e alinhando os fluxos financeiros com o Kunming-Montreal Global Biodiversity Framework e a Visão 2050 para a biodiversidade”.
As opiniões expressas neste artigo são do(s)(a)(as) autor(es)(a)(as) e não refletem necessariamente a opinião da LACLIMA.
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