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*Thais Stoppe
Quando falamos em geração de créditos de carbono florestais, estamos falando de um tipo de pagamento por serviços ambientais. Pagamentos por serviços ambientais (“PSA”) podem ser definidos como “transações entre duas ou mais partes envolvendo a remuneração àqueles que promovem a conservação, recomposição, incremento ou manejo de áreas de vegetação considerada apta a fornecer certos serviços ambientais” [1].
Em termos leigos, fazer um PSA é pagar alguém pela proteção do meio ambiente. Nesse sentido, parece intuitivo pagar mais a quem está protegendo mais e há mais tempo. Assim, quando se deparam com a exigência de adicionalidade para a geração de créditos de carbono, muitas pessoas entendem esse requisito como injusto. Porém, como se verá a seguir, a adicionalidade é o elemento que assegura reais benefícios ao planeta e, caso conjugada com as iniciativas corretas, não prejudica o reconhecimento dos esforços históricos.
O conceito
Curiosamente, apesar de ser um dos termos mais recorrentes no tema de mercados de carbono, não é fácil encontrar definições específicas e amplamente aceitas para o termo “adicionalidade”.
Por exemplo, dentre as metodologias da principal certificadora de créditos de carbono, a Verra, existe uma específica para a demonstração e análise de adicionalidade [2]. Em nenhum momento, porém, essa ferramenta explica ou define o que entende por adicionalidade. A lista de definições do programa também não traz um conceito [3].
Além do caráter dessas previsões no mercado voluntário, nas decisões que regulamentam os instrumentos de mercado do Acordo de Paris são incluídas exigências de que os “créditos” gerados no âmbito do Artigo 6.2 (os ITMOs”: Internationally Transferred Mitigation Outcomes) sejam “reais, verificados e adicionais” e de que as atividades que desejarem emitir créditos por meio do mecanismo do Artigo 6.4 devem “alcançar mitigação de emissões de gases de efeito estufa (“GEE”) que seja adicional” [4].
No mesmo sentido, no Protocolo de Kyoto – que introduziu o tema da “adicionalidade” no âmbito do seu Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (“MDL”) -, há exigência para que reduções de emissões que sejam certificadas e comercializadas sejam “adicionais” ao que teria ocorrido na ausência da atividade do projeto certificado (Artigo 12.5(c)) [5]. Porém, novamente nenhum conceito concreto de adicionalidade é apresentado. Nesse caso, a definição é propositalmente genérica, pois não foi possível alcançar um consenso acerca desta conceituação no âmbito das negociações entre os países [6].
Mesmo em documentos mais especializados, é mais comum encontrar definições “indiretas”. Ou seja, ainda que não se defina “adicionalidade”, é possível saber o que seriam “atividades adicionais”. No glossário de termos do MDL, adicionalidade é definida como o efeito do projeto para reduzir emissões que não teriam ocorrido na ausência do projeto [7].
Para ser mais direto, podemos dizer que adicionalidade é o processo de determinar causalidade, ou seja, determinar se uma determinada atividade está ocorrendo por causa de uma determinada intervenção [8]. Nesse sentido, uma definição geral que pode ser adotada é de que, no contexto de mecanismos de crédito, reduções ou remoções de GEE são adicionais se a atividade de mitigação não teria ocorrido na ausência do incentivo criado pelos créditos de carbono [9]. Ou seja, as reduções de emissões ou captura de gases de efeito estufa devem somar a um cenário que aconteceria independentemente da transação.
O grande desafio de aplicação da adicionalidade é que ela trata de uma comparação com um cenário hipotético não observável (linha de base) em que não haveria determinada intervenção. Como houve de fato uma intervenção, a linha de base é sempre imaginada e nunca pode ser efetivamente verificada. Para tentar uma verificação, foram desenvolvidos diversos testes, que incluem a existência de barreiras legais, regulatórias, de investimento e de práticas difundidas.
A suposta injustiça
Uma consequência lógica da exigência de adicionalidade é que uma atividade de preservação que ocorre há muito tempo e que ocorreria independentemente de sua inserção no mercado de carbono não seria elegível para um projeto de créditos de carbono (e, portanto, à remuneração associada).
Diante disso, diz-se que esse requisito é injusto, pois não reconhece aqueles “prestadores de serviços ambientais” que sempre preservaram o meio ambiente, e, ao contrário, beneficia os agentes que não possuem esse histórico voluntário de preservação.
Um exemplo muito claro também é o caso das energias renováveis no Brasil. Historicamente, por diversas especificidades do país, o Brasil desenvolveu uma matriz energética muito menos emissora de gases de efeito estufa do que o resto do mundo. Assim, quando os mercados de créditos de carbono começaram a surgir e ajudaram a financiar tecnologias que eram ainda pouco adotadas em outros países em desenvolvimento, como motores movidos a etanol combustível, essas tecnologias já eram amplamente difundidas por aqui. E quando as normas regulamentadoras do MDL exigiram que as atividades fossem adicionais para a geração de créditos, elas excluíram iniciativas brasileiras de baixo carbono que já estavam em andamento ou que seriam facilmente desenvolvidas no país pelo fato de a tecnologia ser disseminada . Diante disso, desenvolveu-se no país e, especialmente, nos setores precoces de baixo carbono uma sensação generalizada de estarem sendo punidos por seu caráter visionário.
No mesmo sentido, um país que garantiu historicamente a preservação de suas florestas (os países chamados high forest low deforestation – HFLD) tem muito mais dificuldade em argumentar a adicionalidade de projetos de conservação em seu território. Isso porque a adicionalidade exige que se prove alguma barreira específica para a preservação, mostrando que haveria desmatamento na ausência do projeto.
Diante dessas desvantagens da adicionalidade, por que, então, ela é considerada tão importante? Porque ela serve para garantir a integridade ambiental. Apesar de raramente definida – assim como a adicionalidade, a integridade ambiental é frequentemente citada no âmbito da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima, mas nunca é conceituada [10] – a integridade é facilmente definida por seu resultado de efetivamente promover mitigação de emissões de GEE. Isto é, pode-se dizer que há integridade ambiental em um projeto de carbono quando ele não implica em aumento de emissões de GEE.
Esse conceito decorre da própria justificativa dos mercados de carbono, qual seja, a de que é mais custo-efetivo reduzir as emissões onde elas custam menos. Para que essa conta faça sentido e garanta-se que a atmosfera não sairá perdendo, é necessário que efetivamente ocorram reduções no agregado – ou seja, que haja integridade ambiental [11].
Essa lógica é mais facilmente aplicada em um mercado de teto e comércio de emissões, no qual são atribuídas permissões, ou seja, licenças que dão o direito de emitir. Nesse caso, o agente governamental estabelece o máximo de emissões permitidas, sendo facultado aos agentes econômicos trocar entre si essas permissões que são facilmente fungíveis.
Por outro lado, há grande complicação quando é incluída a possibilidade de compensação de emissões (offset). Nessa situação é autorizado que uma emissão seja compensada por uma emissão evitada – isto é, que deixou de ocorrer. Não estamos mais falando, portanto, de dois direitos de emitir, mas sim de emitir a mais em um local, porque deixou-se de emitir em outro local. A princípio, não há problema nisso, visto que as mudanças climáticas são causadas globalmente e, portanto, as emissões nos diferentes locais são totalmente fungíveis.
A dificuldade decorre do caráter contrafactual da lógica do offset. Quando se fala que uma tonelada de CO2 equivalente “deixou de ser emitida”, diz-se que em um cenário “normal” (denominado “linha de base”), ela seria emitida, mas não foi em decorrência de algum fato específico. Em outras palavras, essa não-emissão é adicional.
Percebe-se, portanto, que para permitir a compensação de emissões, deve necessariamente ser exigida a adicionalidade. Caso contrário, haveria uma dupla injustiça: por um lado, ao emissor de GEE seria permitido adicionar mais carbono na atmosfera, prejudicando toda a humanidade; por outro lado, o emissor do crédito receberia remuneração para não fazer nada de diferente do que teria feito sem o pagamento.
Portanto, em um contexto de offsets ou compensação de emissões, a adicionalidade é justamente o que garante a “justiça” e não o contrário. Inclusive, críticas em relação a cálculos inadequados de “quantificação de adicionalidade” (isto é, de quantas toneladas de carbono evitadas podem ser consideradas adicionais ao cenário base) são as mais comuns e contundentes críticas às transações de créditos de carbono [12].
Além da adicionalidade
Entendida a importância da adicionalidade, ainda resta o fato de que aqueles que preservaram o meio ambiente por livre e espontânea vontade não foram de maneira nenhuma remunerados por suas ações que trouxeram benefícios para a coletividade. Em termos econômicos, pode-se dizer que é necessária a internalização das externalidades positivas dessa atividade.
Como exposto no início desse artigo, os créditos de carbono são um tipo de pagamento por serviços ambientais (PSA). Implica dizer que existem diversos outros tipos de PSA. E, como não contemplam a ideia de compensação de emissões, essas outras modalidades não estão atreladas ao conceito de adicionalidade.
Um exemplo são os subsídios por meio dos quais é dado incentivo econômico para determinado comportamento considerado desejável. Nesse caso, não há qualquer análise acerca de quanto o subsídio está efetivamente alterando o comportamento.
Similarmente, no âmbito internacional há o pagamento pela preservação de florestas, como no caso do Fundo Amazônia. A transferência de recursos é condicionada ao cumprimento de determinadas condições de governança e resultados de preservação, mas não a um cenário contrafactual de não recebimento dos valores.
Há ainda os programas de governos subnacionais, como estados e municípios, que são os modelos mais tradicionais de PSA. O exemplo clássico é o Projeto Conservador das Águas, do município de Extrema/MG, considerado o maior caso de sucesso do Brasil. Nele, os proprietários de terra recebem recursos para proteção e restauração da vegetação do entorno de nascentes e mananciais, contribuindo para a saúde e qualidade dos cursos d’água.
Diante de tantas possibilidades, por que, então, é o mercado de créditos de carbono que recebe tanto destaque? Ora, porque a possibilidade de compensação inclui o elemento mercadológico. Como a lógica de mercado concentra a esmagadora maioria dos recursos, a demanda por créditos de carbono é necessariamente muito maior do que qualquer outro pagamento por serviços ambientais. Tanto é que os mecanismos de PSA não mercadológicos têm como provedores de recursos principais as fundações, as organizações não governamentais e o poder público [13].
Nesse sentido, para irmos além dos créditos de carbono, cabe ao poder público estabelecer programas que incentivem a conservação e remunerem aqueles que sempre preservaram e/ou têm a obrigação de conservar. E cabe à sociedade civil pressionar o governo a não se confinar à lógica de comando e controle e assumir uma postura de provedor de incentivos econômicos, seja de forma direta ou indireta, organizando a estrutura de um programa de remuneração de serviços ambientais.
*Advogada especialista em Direito Ambiental e das Mudanças Climáticas, com atuação em regularização ambiental de propriedades e desenvolvimento de projetos de carbono. Mestranda pela Faculdade de Direito da USP e pesquisadora da LACLIMA.
Referências
[1] NUSDEO, Ana Maria (2012). Pagamentos por serviços ambientais. Sustentabilidade e disciplina jurídica. São Paulo: Atlas, 2012, p. 69.
[2] VERRA. Tool for the demonstration and assessment of additionality in VCS agriculture, forestry and other land use (AFOLU) project activities. Disponível em: <https://verra.org/wp-content/uploads/imported/methodologies/VT0001v3.0.pdf>.
[3] VERRA. VCS Program Definitions. Disponível em: <https://verra.org/wp-content/uploads/2022/12/vcs-program-definitions-v4.3-final.pdf>.
[4] UNFCCC (2021). Report of the Conference of the Parties serving as the meeting of the Parties to the Paris Agreement on its third session. Disponível em: <https://unfccc.int/sites/default/files/resource/cma2021_10a01E.pdf>.
[5] UNFCCC (1997). Kyoto Protocol to the United Nations Framework Convention on Climate Change. Disponível em < https://unfccc.int/resource/docs/convkp/kpeng.pdf>.
[6] GILLENWATER (2012). What is Additionality? Part 1: A long standing problem. GHG Management Institute. Disponível em: <https://ghginstitute.org/wp-content/uploads/2015/04/AdditionalityPaper_Part-1ver3FINAL.pdf>.
[7] UNFCCC. Glossary of CDM Terms. Disponível em: <https://cdm.unfccc.int/Reference/Guidclarif/glos_CDM.pdf>.
[8] GILLENWATER (2012). What is Additionality? Part 1: A long standing problem. GHG Management Institute. Disponível em: <https://ghginstitute.org/wp-content/uploads/2015/04/AdditionalityPaper_Part-1ver3FINAL.pdf>.
[9] WWF; EDF; Oeko-Institut (2020). What makes a high-quality carbon credit? Disponível em: <https://files.worldwildlife.org/wwfcmsprod/files/Publication/file/54su0gjupo_What_Makes_a_High_quality_Carbon_Credit.pdf?_ga=2.114152007.1510126201.1680925694-1671277684.1680925693>.
[10] SCHNEIDER, Lambert; THEUER, Stephanie La Hoz (2018). Environmental integrity of international carbon market mechanisms under the Paris Agreement. Climate Policy, Vol. 19, No. 3, 386-400. Disponível em: <https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/14693062.2018.1521332>.
[11] KREIBICH, Nicolas; HERMWILLE, Lukas (2016). Robust Transfers of Mitigation Outcomes: Understanding Environmental Integrity Challenges. Jiko Policy Paper No. 02/2016, Wuppertal Institut.
[12] Por exemplo: <https://www.theguardian.com/environment/2023/jan/18/revealed-forest-carbon-offsets-biggest-provider-worthless-verra-aoe>.
[13] NUSDEO, Ana Maria (2018). Direito ambiental & economia. Curitiba: Juruá, 2018.
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