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    LACLIMA Paper Series

    Litigância ESG no Brasil

    Alessandra Lehmen*

                A litigância ESG Environmental, Social, and Governance, ou, em português, ASG, Ambiental Social e Governança –, é um tema em ascensão no Brasil e no mundo. À medida que o setor privado está cada vez mais sujeito a obrigações ESG – advindas tanto do crescente movimento de regulação quanto da adesão voluntária a frameworks autorregulatórios –, é possível prever o surgimento de novas modalidades de litigância estratégica questionando seu cumprimento. Para além da litigância climática e socioambiental baseada em argumentos de direitos humanos e direcionada contra órgãos governamentais, há uma tendência de que sejam crescentemente manejados casos envolvendo o setor privado, com base em fatores ESG mais específicos e granulares. Tendo como pano de fundo essa constatação, esta breve análise explora tendências e possibilidades de litigância ESG no Brasil, considerando as especificidades do ordenamento jurídico brasileiro. Embora o Brasil seja o foco deste artigo, lições decorrentes da análise de litígios ESG no país são potencialmente transferíveis para outras jurisdições.

                ESG não é um conceito novo – suas origens próximas remontam a 2004, ano em que o então Secretário-Geral da ONU, Kofi Annan, escreveu a 55 das principais instituições financeiras do mundo convidando-as a integrar princípios de ESG ao mercado financeiro, e o UN Global Compact publicou o relatório Who Cares Wins, que incorporou expressamente o termo -, mas ganhou notável tração nos últimos anos. Iniciativas regulatórias e voluntárias que tratam do tema têm se multiplicado, assim como tentativas de harmonização de padrões de divulgação de informações, debates sobre materialidade e críticas à utilização do conceito como ferramenta de virtue signalling desacompanhada de implementação efetiva.

                Os fundamentos materiais para a litigância ESG são potencialmente muito variados, assim como o são os temas abrangidos em cada uma das letras que compõem a sigla. Por isso, não serão aprofundados nesta breve análise, mas é importante referir o surgimento de grandes temas relacionados à agenda climática – sustentados por um arcabouço em expansão de normas internacionais e domésticas –, ações de stakeholders quanto a falhas de informação e a práticas de washing, e, ainda, maior escrutínio sobre os mercados financeiro e de capitais. Vale dizer, todavia, que, a despeito dos debates sobre o que é material, a litigância ESG pode se desenvolver sob uma ótica de dupla materialidade. O conceito, introduzido em 2019 pela Comissão Europeia, considera como o setor privado impacta questões ESG e como é por elas impactado, em uma dupla matriz de materialidade financeira (financial materiality) e materialidade externa (outward materiality). Assim, a litigância ESG pode questionar tanto os impactos do negócio sobre questões ESG, e o seu grau de exposição aos riscos a eles associados, quanto os impactos das questões ESG sobre a performance do negócio e sobre sua resiliência a esses riscos, ou ambos.

                Há expectativa de que o crescimento de obrigações de divulgação amplie o acesso a informações relevantes quanto às políticas ESG adotadas pelo setor privado, potencializando o escrutínio do conteúdo dessas informações. Além disso, iniciativas regulatórias e autorregulatórias criam obrigações que podem, caso inobservadas, ser questionadas por acionistas ou outros stakeholders. É importante que se diga que mesmo iniciativas autoimpostas por meio de frameworks voluntários, uma vez assumidas pelas empresas, vêm gerando questionamentos judiciais e extrajudiciais, em especial no que tange à sua integridade e a práticas de greenwashing e climate-washing.

                A litigância ESG complementa, e não suplanta, a estratégia de litigância rights-based que vem sendo amplamente utilizada no Sul Global, em especial em casos climáticos. Ao mesmo tempo em que estratégias ESG vêm progressivamente incorporando aspectos de direitos humanos, principalmente no que diz respeito aos aspectos ‘S’, outras questões ESG – por exemplo, a agenda climática – são transversais às três letras da sigla. Na medida em que as questões ESG são cada vez mais reguladas, a litigância ESG agrega argumentos que contestam obrigações ESG concretas e objetivas, que reforçam e conferem granularidade a conceitos abrangentes de direitos humanos.

                É relevante, também, o crescimento da litigância ESG com características transnacionais. As possibilidades são várias: litígios questionando a terceirização de impactos ambientais e climáticos, tendo por alvo empresas que são relativamente mais limpas em seus países de origem, mas grandes poluidoras em outras jurisdições (veja-se, por exemplo, os casos baseados na lei francesa de vigilância de 2017, que questionam atividades em países como Uganda, México, Brasil e Colômbia); litígios ajuizados nos países de origem das empresas por fatos ocorridos em outras jurisdições; litígios envolvendo cadeias de fornecimento que abranjam múltiplas jurisdições; ou, ainda, disputas no âmbito de acordos comerciais, que, cada vez mais, envolvem questões ESG sensíveis e potencialmente litigiosas, tais como barreiras de carbono e desmatamento associado à produção de commodities. Outro traço distintivo da litigância ESG transnacional é o crescimento da litigation finance, por meio da qual um terceiro investidor custeia as despesas de uma arbitragem ou de uma demanda judicial em troca de parte do proveito econômico obtido em caso de êxito.

                A litigância ESG pode desenvolver-se fora dos tribunais, por exemplo, por meio de reclamações na OCDE ou perante reguladores de valores mobiliários, comércio, publicidade e outras agências governamentais. Riscos reputacionais à parte, também é possível que o setor privado tome mais frequentemente a ofensiva e inicie litígios questionando obrigações ESG e climáticas, a exemplo da judicialização das metas do RenovaBio.

                A pauta ESG baseia-se em uma nova concepção dos deveres fiduciários, que é importante para que se compreenda o fenômeno da litigância ESG. Em 2005, a Iniciativa Financeira do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (United Nations Environment Programme Finance Initiative, ou UNEP-FI) incumbiu o escritório de advocacia Freshfields Bruckhaus Deringer de produzir o relatório A Legal Framework for the Integration of Environmental, Social and Governance Issues into Institutional Investment, mais conhecido como Relatório Freshfields, que estabeleceu, de forma pioneira, que a integração de considerações ESG às análises de investimentos é não só permissível como necessária, em todas as jurisdições. Em 2015, o relatório O dever fiduciário no século XXI, elaborado pela iniciativa Princípios para o Investimento Responsável (Principles for Responsible Investment, ou PRI), uma rede de investidores apoiada pela Organização das Nações Unidas (ONU), corroborou esse entendimento, afirmando que é uma quebra do dever fiduciário não considerar geradores de valor de longo prazo, inclusive questões ESG, na gestão de recursos.

                No antigo embate entre capitalismo de shareholders (acionistas) e capitalismo de stakeholders (a sociedade em geral), a ideia de que ambas as modalidades podem e devem conviver ganhou força com a discussão sobre a compatibilidade entre, de um lado, a integração de fatores ESG às decisões de investimento, e, de outro, os deveres fiduciários das empresas e dos investidores. Nesse contexto, a discussão que se trava é quanto a se a integração de fatores ESG implicaria o sacrifício de retornos financeiros e da maximização de lucros dos acionistas. Hoje, ainda que não de modo unânime, há o entendimento de que a consideração de aspectos ESG favorece o crescimento sustentável de longo prazo das empresas e é parte do dever fiduciário, e que companhias com boa performance em fatores ESG apresentam melhores resultados.

                No Brasil, esses deveres fiduciários encontram paralelo em normas constitucionais e infraconstitucionais. A Constituição Federal determina que a propriedade privada e a ordem econômica e social devem garantir o bem-estar social, e que a proteção ambiental é um dever do governo e da sociedade. No âmbito infraconstitucional, o dever jurídico de considerar critérios ESG nas operações das companhias pode ser considerado um corolário dos deveres fiduciários criados pela Lei das S.A.. Isso se dá em dois níveis. Primeiro, por conta do dever fiduciário imposto aos controladores pelo parágrafo único do art. 116 da Lei das S.A., que determina que o acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com acionistas, empregados e a comunidade em que atua. Segundo, o art. 154 da Lei das S.A. estende aos administradores o dever de, no exercício de suas atribuições legais e estatutárias para lograr os fins e no interesse da companhia, atender às exigências do bem público e da função social da empresa.

                Desde 1976, portanto, o ordenamento jurídico brasileiro contém previsão expressa de que os controladores e administradores das companhias brasileiras internalizem externalidades que possam afetar stakeholders. O princípio 2.1 do Código Brasileiro de Governança Corporativa, referido no Anexo D da Resolução CVM 80/2022, reforça esses deveres, ao determinar que o conselho de administração deve exercer suas atribuições considerando os interesses de longo prazo da companhia, os impactos decorrentes de suas atividades na sociedade e no meio ambiente e os deveres fiduciários de seus membros, atuando como guardião dos princípios, valores, objeto social e sistema de governança da companhia. Ainda no âmbito infraconstitucional, o art. 187 do Código Civil brasileiro contém previsão semelhante, que estabelece que comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

                Sob a ótica dos investimentos, um importante desdobramento dos deveres fiduciários acima descritos é o de que os investidores institucionais têm obrigações de stewardship, sendo responsáveis por realizar boas decisões de investimento – analisando riscos e oportunidades – nos mercados de capitais. Por conta disso, investidores institucionais têm figurado, no Brasil e em outras jurisdições, tanto como demandantes junto às investidas quanto como demandados por seus beneficiários, em litígios baseados em argumentos relacionados à consideração de aspectos ESG nas decisões de investimento.

                Sob o ponto de vista processual, para além das ações coletivas comumente utilizadas para questionamentos de temas vinculados à temática ESG, o Direito Societário brasileiro disponibiliza aos investidores instrumentos ainda pouco testados nessas questões, tais como a ação civil pública de responsabilidade por danos causados aos investidores no mercado de valores mobiliários prevista na Lei nº 7.913/1989, com aplicação subsidiária da Lei da Ação Civil Pública; as ações derivadas por dano direto à companhia pela atuação dos administradores com quebra dos deveres fiduciários, mediante prévia deliberação em Assembleia Geral; a ação de responsabilidade dos controladores prevista no art. 246 da Lei das S.A.; e a ação de anulação de decisões tomadas em Assembleias de Acionistas.

                Diga-se, por fim, que a litigância ESG pode ser um poderoso instrumento de governança nos casos em que os processos de diálogo que caracterizam o engajamento falhem em promover mudanças. A litigância estratégica é um método de advocacy, com objetivos amplos, multifacetados e muitas vezes de longo prazo, que se desenvolve perante tribunais ou outros mecanismos de solução de controvérsias, internacionais ou nacionais. O êxito em litígios estratégicos é, portanto, polissêmico: o simples ajuizamento de uma ação pode ser, por si só, um fator indutor de mudanças de conduta, no caso concreto e também com reverberações em todo o ecossistema corporativo.


    * Integrante do GT de Litigância Climática da LACLIMA. Advogada habilitada no Brasil e em Nova York. Sócia de Juchem Advocacia. ESG Certificate pelo CFA Institute. Laureada Pós-Doutoral no programa Make Our Planet Great Again, da Presidência da França/Centre Nationale de Recherche Scientifique/Aix-Marseille Université. Doutora em Direito Internacional pela UFRGS. Mestre em Direito Ambiental por Stanford e em Direito Internacional pela UFRGS. Presidente da Comissão de Direito Ambiental da OAB/RS. Membro da Comissão Nacional de Mudanças Climáticas do Conselho Federal da OAB. W50 Scholar, Santander/London School of Economics. Rising Environmental Leaders Fellow pelo Stanford Woods Institute. Prêmio Stanford Olaus and Adolph Murie de melhor obra em Direito Ambiental. Prêmio Conservation Catalysts, do Lincoln Institute/Harvard Forest. Especialista em Negociação por Harvard e em Direito da Empresa e da Economia pela FGV. Diretora do Departamento de Direito Ambiental do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul (IARGS). Ex-membro do Conselho de Meio Ambiente da FIERGS. Membro do Centre Internationale de Droit Comparé de l’Environnement (CIDCE). Membro titular do Conselho Municipal de Meio Ambiente de Porto Alegre. Membro da Union of Concerned Scientists Science Network. Membro da rede de colaboração em Comércio Internacional e Mudanças Climáticas da Universidade de Cambridge/Lauterpach Centre for International Law. Pesquisadora no INCT-INEU (CNPq). Membro da World Commission of Environmental Law e do Grupo Temático de Mudanças Climáticas da IUCN. ORCID ID: 0000-0003-3073-5633. E-mail: alehmen@alumni.stanford.edu

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