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*Brenda Dutra Franco e **Clara Barradas
A discussão acerca da litigância climática tem crescido no mundo conjuntamente à preocupação com a responsabilidade ambiental e com a injustiça intergeracional ambiental. Isso não é diferente no Brasil, que também tem visto crescer o número de litígios dessa natureza, sobretudo na série de ações pautadas para julgamento pelo Supremo Tribunal Federal em 2022, no que ficou conhecido como “Pauta Verde”[1]. Esses julgamentos foram marcantes na criação de precedentes que tratam explicitamente da agenda das mudanças climáticas, ainda que em meio à questão mais abrangente do meio ambiente.
A litigância climática apresenta maior complexidade quando comparada a outros litígios ambientais. Quando voltada a casos de responsabilização por perdas e danos, por exemplo, é difícil comprovar uma causalidade entre a ação ou omissão de um agente, inclusive do Estado, que tenha dado causa a algum efeito climático específico – o qual tenha, por sua vez, implicado em danos a indivíduos. Além disso, os efeitos climáticos são transfronteiriços, ou seja, eles não respeitam fronteiras políticas, e podem ter múltiplos causadores inclusive internacionais.
Relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente apontou que a litigância climática também pode se constituir em uma medida de caráter estratégico para enfrentar as mudanças climáticas, colaborando para o aumento das legislações nacionais e internacionais sobre o tema, além de garantir o cumprimento das obrigações estabelecidas no Acordo de Paris, o principal marco normativo internacional no combate às mudanças climáticas[2].
Nesse sentido, é comum que o litígio climático seja descrito como “transnacional” ou como parte de um movimento “global” de justiça climática, mesmo quando os casos envolvem apenas litigantes e decisões de tribunais locais. O litígio climático torna-se “parte do diálogo regulatório transnacional sobre mudanças climáticas” e ajuda a moldar a governança climática através da jurisprudência[3].
A litigância climática pode também servir para estimular que sejam alterados os comportamentos de instituições públicas ou privadas em relação à agenda climática. Os litígios assim desempenham um papel suplementar e de preenchimento de lacunas na regulação de políticas de mudanças climáticas, diante da inação de governos e empresas na tomada de medidas para enfrentar o problema[4].
Com efeito, segundo a Constituição Federal Brasileira, proteger o meio ambiente – e assim também o clima equilibrado – é uma responsabilidade de todos indistintamente, sendo que cabe ao Estado exercer sua liderança e integrar a contenção das mudanças climáticas em seu plano nacional de desenvolvimento. A violação desse dever por parte do governo – mas também por parte de indivíduos e empresas – já tem desaguado nos denominados litígios climáticos no Brasil.
Nos dias 30 e 31 de março de 2022, foram pautadas para julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) sete ações judiciais sobre os temas de meio ambiente e mudança do clima, assim denominada “Pauta Verde”. As ações discutem questões como desmatamento e destinação de recursos públicos para ações de conservação florestal e fiscalização ambiental[5].
Nelas se evidencia que o tema das mudanças climáticas tem chegado aos tribunais brasileiros como parte da pauta ambiental, dentro de uma perspectiva de controle judicial das políticas públicas ambientais do Poder Executivo.
É o caso, por exemplo, da ADPF 760, que cobra a retomada do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia (PPCDAm). Segundo os acionantes, houve diminuição da fiscalização ambiental e, consequentemente, aumento no desmatamento, o que por sua vez causa emissões de gases de efeito estufa, afetando assim os direitos das presentes e das futuras gerações a um meio ambiente ecologicamente (e a um clima) equilibrado.
Também foi este o racional da ADO 54, que apontou omissão do governo federal no combate ao desmatamento na Amazônia, solicitando ao STF que cobre medidas concretas da União para evitar o desmatamento crescente na região. Em seu voto nesta ação judicial, a Ministra Relatora Cármen Lúcia ressaltou os acordos internacionais dos quais o Brasil é membro e que há um dever do Estado brasileiro em fazer a sua parte na promoção da mitigação climática. A Ministra lamentou que no Brasil a inação e a negligência dos demais Poderes para com as obrigações estabelecidas nos acordos internacionais faça com que a questão precise ser remetida ao Judiciário.
Ao final, certa da situação ambiental gravíssima em que o país se encontrava, e baseada em estudos científicos, reconheceu a existência de um “estado de coisas inconstitucional” em matéria ambiental no Brasil. Em sua fala, relembrou e defendeu a importância do princípio da proibição de retrocesso em matéria ambiental, que visa à garantia de progressividade na proteção ambiental e preservação das condições ambientais, conforme estabelecem a Constituição Federal e os Acordos Internacionais dos quais o Brasil é signatário.
A Ministra Cármen Lúcia ressaltou o contexto da mobilização dessas ações judiciais, que foram articuladas contra políticas ambientais omissivas ou violadoras de normas ambientais ao longo do governo Bolsonaro: “há um quadro estrutural de violação a direitos na situação ambiental do país.”[6]
Embora a ênfase seja na ameaça à situação ambiental do país, ela simultaneamente acaba por criar uma situação de agravamento da crise climática, provocada pelas ações e omissões do governo federal brasileiro no período – as quais, como dito pela Ministra, têm impactos extraterritoriais: afetam o mundo inteiro.
Em razão disso, o julgamento das ações da Pauta Verde chamou a atenção da comunidade internacional, por se mostrar também uma expressão do desenvolvimento da litigância climática no Brasil, com impactos positivos para a agenda climática global.
Além disso, a Pauta Verde não apenas ajudou a provocar a manifestação do Judiciário – e assim criar jurisprudência – em matéria climática no Brasil, mas oportunizou também a discussão da pauta ambiental e de mudanças climáticas à luz da pauta de direitos humanos[7], tendo restado claro que não há como dissociar essas questões.
Nessa linha, o voto do Ministro Barroso na ADPF 708 foi uma verdadeira obra-prima:
“(…) a Constituição reconhece o caráter supralegal dos tratados internacionais sobre direitos humanos de que o Brasil faz parte, nos termos do seu art. 5º, § 2º. E não há dúvida de que a matéria ambiental se enquadra na hipótese. Como bem lembrado pela representante do PNUMA no Brasil, durante a audiência pública: “Não existem direitos humanos em um planeta morto ou doente” (p. 171). Tratados sobre direito ambiental constituem espécie do gênero tratados de direitos humanos e desfrutam, por essa razão, de status supranacional. Assim, não há uma opção juridicamente válida no sentido de simplesmente omitir-se no combate às mudanças climáticas”.
Ao reconhecer que o Acordo de Paris é um tratado de direitos humanos, o STF inaugura um precedente pioneiro no mundo, que eleva o status da discussão sobre a mudança do clima. A violação da proteção do clima equilibrado passa a ser sinônimo de violação de direitos humanos, assegurado na Constituição Federal do Brasil.
A Pauta Verde do Supremo Tribunal Federal foi um marco de extrema relevância para o desenvolvimento da litigância climática estratégica no Brasil. Por meio dela, o STF demonstrou os limites à discricionariedade do Estado brasileiro no que concerne às políticas públicas ambientais diante dos compromissos assumidos perante a comunidade internacional; reafirmou o princípio da proibição do retrocesso em matéria ambiental com sua expressão também na pauta de mudanças climáticas e reconheceu o direito à vida e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado – sobretudo na sua dimensão climática e em seu caráter intergeracional – como direitos humanos. Resta ver agora os efeitos desses julgamentos nas políticas públicas climáticas no Brasil, ou em futuros casos a serem levados ao Judiciário, contra governos em todos os seus níveis, empresas e instituições que venham a falhar no seu dever de agir para manter o clima equilibrado.
*Advogada e Mestranda em Direito e Inovação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Membra do LACLIMA, do Grupo de Pesquisa Empresa, Desenvolvimento e Responsabilidade (EDResp) da UFJF e do Grupo de Pesquisa em Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB).
**Servidora pública federal atuante na Coordenadoria de Gestão Estratégica e Sustentabilidade do TJDFT,Especialista em Direito Ambiental, Membra da LACLIMA.
Referências
[1] São elas as ações: ADPF 651, ADPF 760, ADO 54, ADPF 735, ADO 59, ADI 6148, ADI 6808 e ADPF 708.
[2] CARVALHO, D; BARBOSA, K. Litigância climática como estratégia jurisdicional ao aquecimento global antropogênico e mudanças climáticas. Revista de Direito Internacional, Brasília, 2019, v. 16, n. 2, p. 63.
[3] PEEL, J; LIN, J. Transnational Climate Litigation: The Contribution of the Global South. 2019. The American Society of International Law, 113(4), p. 696-697; p. 699.
[4] CARVALHO, D. Novos rumos e potencialidades, promete expandir a litigância climática no país para rumos mais ambiciosos, na busca por uma Boa Governança Climática e a adequada gestão dos desastres ambientais. Climate litigation as environmental governance Revista de Direito Ambiental, vol. 96/2019, p. 336.
[5] Versam de uma maneira geral sobre os direitos constitucionais a seguir nominados: i. violação ao dever governamental de proteção ao meio ambiente, de precaução e prevenção de danos ao meio ambiente e de preservação de florestas e de um meio ambiente equilibrado, presentes (arts. 23, 170, 186 e 225); ii. violação ao direito fundamental dos cidadãos brasileiros ao meio ambiente equilibrado, à informação e à saúde (arts. 196 e 225); iv. violação do direito intergeracional ao meio ambiente equilibrado, à vida, à dignidade da pessoa humana e à saúde (arts. 1º, 5º, 196 e 225); v. violação do direito dos povos indígenas e dos povos e comunidades tradicionais às suas terras tradicionais (arts. 215, 216, e 231).
[6] Outras ações judiciais da Pauta Verde incluem a ADPF 651, que trata da ação do governo que, via decreto, excluiu a sociedade civil do conselho deliberativo do Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA) e que no dia 28/04/22 foi julgada procedente; a ADPF 735, a qual contesta a Operação Verde Brasil 2 e o uso das Forças Armadas em ações contra delitos ambientais, julgada prejudicada em 09/12/2022; a ADO 59, que pede a reativação do Fundo Amazônia, a fim de captar doações para investimentos em prevenção, monitoramento e combate ao desmatamento e que foi julgada parcialmente procedente; a ADI 6148, que sugere a retomada da Resolução 491/2018, do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), que teria estabelecido padrões de qualidade do ar insuficientes e incompatíveis com as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), e que acabam por violar direitos fundamentais à informação, à saúde e ao meio ambiente equilibrado, julgada improcedente; e a ADI 6808, que contesta a Medida Provisória que prevê concessão automática de licença ambiental para empresas de grau de risco médio e impede órgãos de licenciamento de solicitarem informações adicionais àquelas informadas pelo solicitante no sistema da Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios (Redesim), julgada procedente em 28/04/2022.
[7] LISBOA, L. A Litigância climática brasileira: caminhos e fatores nacionais em um fenômeno global. Revista dos Estudantes de Direito da Universidade de Brasília, [S. l.], v. 1, n. 19, 2021, p. 614.
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