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    LACLIMA Paper Series

    Mercado de carbono e adicionalidade em projetos de energias renováveis

    Rodrigo Sluminsky*

    Durante pouco mais de 50 anos, o Brasil vivenciou alterações significativas na sua matriz energética. Em 1970, a queima da lenha representava 64,2% de toda a produção de energia primária no Brasil. Com o processo de industrialização, transição demográfica, mudança de hábitos, intensificação do uso dos combustíveis fósseis e exploração das chamadas fontes alternativas, em 2022 temos uma situação incrivelmente diferente.

    Anos antes, por conta da dependência das importações de hidrocarbonetos, o país iniciava a estruturação de um parque industrial no setor de petróleo para pesquisa, prospecção, exploração, refino, distribuição e outras atividades. De modo que, no caso da matriz elétrica, no início da década de 1970, petróleo e derivados ocupavam um percentual entre 40% e 50%. E na medida em que a produção interna de petróleo assumia esse papel preponderante ao longo dos anos, a exploração e produção do gás natural também acabou surfando essa onda.

    No meio do caminho, com a primeira grande crise do petróleo, a indústria do carvão mineral pôde consolidar seu papel intermediário na matriz energética brasileira. Entre 1974 e 1986, a oferta interna de carvão mineral e coque mais que dobrou, representando algo como 7,6% de Oferta Interna de Energia (OIE) à época. Foi o “boom” do setor, com novas termoelétricas e uso acelerado de carvão mineral pela indústria eletrointensiva.

    Vejam, tudo isso sem quaisquer preocupações com o tal do efeito estufa.

    Por vários motivos, o mundo das renováveis também se saiu bem no Brasil. Nessa primeira crise do petróleo, tivemos um avanço exponencial na indústria do álcool combustível. Em praticamente uma década, ocupou 15% da matriz energética e conquistou algo como 40% do mercado de veículos leves. Em 1983, carros a etanol representavam 90% do total de vendas e sua mistura com a gasolina representava algo como 15%. Desde então, biomassa também vem ocupando um lugar relevante na OIE. 

    A realidade das hidrelétricas não é diferente. Também em muito pouco tempo, com destaque para a implantação da UHE Itaipu (14GW) e UHE Tucuruí (8,5GW), a participação de energia hidrelétrica na OIE saltou de 5% para 15%. Na prática, o enorme crescimento da oferta de energia elétrica no Brasil sempre foi assegurado por hidrelétricas, que chegou a representar algo próximo de 90% da matriz elétrica no ano de 2000, quando se inicia o atual modelo de diversificação da oferta de geração de energia.

    A matriz energética brasileira evoluiu intensamente nos últimos 50 anos, partindo de um modelo extremamente isolado, à base de biomassa (lenha, carvão vegetal) e pequenas centrais geradoras, para um crescimento vertiginoso do uso intensivo de combustíveis fósseis, sobretudo pela indústria e pelo setor de transportes, e da geração de energia hidrelétrica para suprimento do que veio a ser o Sistema Interligado Nacional (SIN).

    O que temos hoje, de maneira proporcional, é um relativo equilíbrio da matriz primária de energia no Brasil nos últimos 30 anos, sendo pouco mais da metade proveniente da queima de combustíveis fósseis (petróleo, carvão, gás natural) e o restante proveniente de insumos renováveis (hidroelétrica, nuclear, biomassa e, mais recentemente, eólica e solar).

    Podemos dizer com franqueza que tudo isso ocorreu sem participação relevante de qualquer mercado de carbono.

    Então a pergunta que ser faz agora, com a mesma franqueza, seria questionar se deveríamos atrelar aumento de oferta de energia ou qualquer diversificação na matriz energética brasileira à comercialização ou à compensação de eventuais créditos de descarbonização. É exatamente isso que entendemos necessário esclarecer.

    A temática da adicionalidade no contexto dos mercados de carbono não é nova. Em primeira síntese, trata-se de trazer efetividade na alocação de custos, no sentido socioeconômico, dentro do universo da integridade ambiental, particularmente no contexto de economia de mercado. Mas podemos ir além.

    Originalmente desenhado para o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), sob o contexto do Protocolo de Kyoto e do Acordo de Marrakesh, o conceito foi ampliado para endereçar várias outras ideias sobre adicionalidade, tal como legal ou regulatória, tecnológica, de retorno sobre o investimento. E tem sido aplicado para projetos de baixo carbono em diversos mercados pelo mundo, regulados ou voluntários.

    De modo que a essência da adicionalidade, sob o conceito atual, significa assegurar que o resultado da mitigação de fato não teria ocorrido na ausência do projeto em questão, entendido por mitigação, de maneira simplificada, a redução de gases de efeito estufa (GEE) na atmosfera. Do ponto de vista estrito das mudanças climáticas, nos termos do Artigo 4.1 do Acordo de Paris, é necessário identificar rapidamente o limite global de emissões e efetuar reduções na sequência, dentro da melhor ciência disponível, para consolidar um suposto equilíbrio entre as emissões antropogênicas e as respectivas remoções até 2050. Com a expectativa de manter o aumento da temperatura média mundial bem abaixo dos 2 graus Celsius em relação aos níveis pré-industriais e prosseguir os esforços para limitar o aumento da temperatura a 1,5 graus Celsius. Tudo isso dentro do contexto do desenvolvimento socioeconômico e da erradicação da pobreza. Não é pouca coisa.

    No mundo moderno, portanto, adicionalidade tem o contexto da estabilização do clima. Hoje já alcançamos aproximadamente 1,15 graus Celsius com aproximadamente 421ppm de concentração de dióxido de carbono na atmosfera projetado este ano. Pelo menos metade desse montante foi gerado pela humanidade a partir de 1990, ou seja, os últimos 30 anos foram devastadores para o clima. Atualmente, estamos aumentando a concentração em algo como 2,2ppm por ano. No ano de 2021 foram aproximadamente 36,4 bilhões de toneladas de dióxido de carbono. Se considerarmos também outros GEE, como o metano e óxido nítrico, por exemplo, emitimos anualmente algo como 51 bilhões de toneladas de GEE na atmosfera. Nesse ritmo, ultrapassaremos a meta do Acordo de Paris na metade da próxima década. Exatamente isso que devemos evitar.

    Por isso que o maior erro na implantação de projetos que buscam endereçar a descarbonização no mundo é viabilizar o aumento das emissões globais por meio de critérios e contabilização não confiáveis. Em vez de limitar as emissões globais de GEE, tais novos projetos ajudam, de forma equivocada, as atividades que mais poluem. Isto é, se tais projetos comprometidos com a mitigação climática já seriam implantados independentemente de eventuais créditos de carbono, então se trata de projetos não adicionais e a utilização de seus créditos, por mais paradoxal que pareça, acaba por aumentar as emissões globais. Por isso que adicionalidade é tão importante. 

    Além disso, tem se dado muito destaque na literatura, sobretudo por conta das previsões do Acordo de Paris, para o conceito de integridade ambiental, sobretudo no contexto dos mercados de carbono. É preciso ser extremamente diligente aqui por conta dos possíveis efeitos do estabelecimento de alguma ficção jurídica nas atividades que buscam de fato a descarbonização. Isso porque a efetiva geração de créditos de carbono, tanto no mercado regulado do Artigo 6 do Acordo de Paris, como nos demais mercados regulados e voluntários, consubstancia-se em um ativo econômico transacionável. De forma que, dentro do nosso contexto, integridade ambiental acaba sendo o principal elemento da adicionalidade.

    A integridade ambiental, portanto, estaria assegurada se as compensações de créditos não levassem a uma situação em que as emissões reais agregadas sejam maiores em comparação com determinada linha de base. Naturalmente vários fatores influenciam para que isso não aconteça, mas os principais fatores estão de alguma maneira ligados às regras básicas de governança e metas estabelecidas em determinado contexto, como é o caso do Acordo de Paris, que prevê alguns compromissos de planejamento, ações, contabilização e reporte para o cumprimento das metas descritas nas Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC), revisadas periodicamente conforme as próprias regras estabelecidas no Acordo.

    Então integridade ambiental estaria ligada a uma correta governança e contabilização da “mais valia” ambiental, com base em metas consolidadas de mitigação, dentro de regras transparentes de cada país, considerando critérios de exatidão, exaustividade, comparabilidade e coerência, dentro de uma lógica de longo prazo, de forma a evitar dupla contagem e incentivar a adoção de maiores níveis de ambição e futuras ações de mitigação. Em outras palavras, os projetos que promovem a descarbonização somente poderiam ser considerados adicionais por superarem algum cenário pré-determinado pelas regras dentro de cada contexto.

    Acontece que nem sempre é fácil definir a qualidade de determinado projeto. Os diversos mecanismos de identificação de créditos enfrentam desafios na avaliação de linhas de base de adicionalidade e emissões, principalmente devido à assimetria de informações entre desenvolvedores e reguladores e incerteza na perspectiva de novos projetos. Basta tomar como base os últimos relatórios de expansão de energia no Brasil, com expectativas e acurácia variadas. Essa assimetria está presente não só no âmbito nacional como também na forma como são contabilizados os dados pelos países, e na forma como são verificados e certificados tais dados pelas entidades operacionais designadas.

    Importante salientar que diferentes abordagens são usadas para identificar a qualidade do projeto na prática e, em última análise, definir se está contemplado o conceito de adicionalidade. Esses diferentes modelos coexistem e estão refletidos em várias formatações a depender dos contextos particulares, objetivos e preferências do formulador de políticas.

    Entendidos os conceitos de adicionalidade e integridade ambiental, adicionamos então o contexto das energias renováveis.

    A maneira mais prática de verificar adicionalidade de um projeto de geração de energia limpa é demonstrar se há alguma barreira financeira. Dito de outra forma, é necessário entender se há efetiva adicionalidade financeira. Se algum projeto depender fundamentalmente da existência da receita de créditos de carbono desde o início da sua concepção, portanto ele pode ser elegível para tanto. Notem que influencia aqui o momento e a localidade em que o projeto é desenvolvido. Dificilmente um país dito desenvolvido conseguiria argumentar por recursos adicionais para algum projeto de geração de energia renovável com base em fonte já consolidada, da mesma forma que, mesmo em países em desenvolvimento, como é o caso do Brasil, não é simples argumentar pela adicionalidade de projetos que já detivessem modelos de negócio consolidados, como é o caso de geração centralizada solar ou eólica.

    Inclusive, nós vemos uma problemática razoável para aplicação desse critério inclusive para modelos ainda não consolidados. No caso do Brasil, a modelagem de investimentos considera premissas bastante diversas por conta da própria diversidade de modelos de negócio. A implantação de um projeto de energia eólica ou solar de grande escala por investidor estrangeiro não é comparável à implantação de projetos de geração distribuída por investidores nacionais. Considerando fontes de recursos, acesso ao capital, condições de financiamento e modelo de comercialização de energia ou créditos, o retorno e a exigência financeira são outros. E independente da métrica – fluxo de caixa descontado, múltiplos, taxa interna de retorno ou ROI, por exemplo – a identificação da adicionalidade financeira é distinta. Por isso existe uma linha de argumentação que não haveria adicionalidade para projetos de energia renovável – ou pelo menos isso não seria o grande vetor de transformação do setor. Como exemplo concreto temos o caso dos projetos de geração de energia cadastrados no MDL. Se desconsiderarmos a frustração de receita adicional, todos eles acabaram por serem viabilizados independentemente da existência dos créditos de carbono. Há inclusive vários casos indicando baixa qualidade em tais projetos – o que inclusive foi uma das teses para a baixa efetividade do modelo.

    Outra forma que tem sido bastante considerada seria alguma barreira legal, regulatória ou institucional. De forma didática, estamos nos referindo aqui a qualquer questão relevante que advenha da assimetria no acesso de informações ou da superação dos entraves burocráticos para a implantação de determinado projeto de energia renovável. Os fatores aqui podem ser diversos, desde a aceitação de determinado empreendimento pela sociedade civil até a conformidade legal, regulatória ou ambiental (em sentido estrito), bem com fiscal, trabalhista, ou até mesmo alguma barreira contratual por conta de determinado compromisso amplamente assumido pelos agentes intervenientes. Poderá haver adicionalidade se tais fatores forem identificados.

    Parece-nos ainda mais essencial nesses casos que o baselineesteja bastante consolidado e se refiram à realidade de determinado país ou região. Por exemplo, é bastante claro que existem barreiras regulatórias para a implantação de projetos de geração de energia eólica offshore ou hidrogênio verde. Com base nas informações e regras disponíveis hoje, tais projetos teriam muito apelo à adicionalidade. Por outro lado, existe um debate bastante ativo a respeito da adicionalidade de projetos de proteção da biodiversidade em áreas legalmente protegidas. É um bom exemplo de fora do universo da energia sobre garantia de qualidade dos ativos.

    Também é bastante claro para nós identificarmos adicionalidade considerando alguma barreira tecnológica. Neste caso, o benefício da efetiva descarbonização somente aconteceria com a aplicação de tecnologia extraordinária. Aqui é mais fácil identificar algum exemplo de dentro da realidade dos projetos de energia renovável. Por exemplo, justificar adicionalidade pela necessidade de aumento da potência de determinada turbina eólica não nos parece algo razoável ou mesmo possível, ao passo que identificar parques eólicos que não se viabilizam sem a adoção de alguma tecnologia disruptiva ou ao menos inovadora, no nosso entendimento, pode ser um bom caminho para tal justificativa. Por exemplo, os sistemas híbridos de geração de energia podem ter um apelo interessante à adicionalidade, assim como uso de baterias, sobretudo por usinas com baixo fator de capacidade. Tecnologias não tão consolidadas como energia maremotriz ou energia solar concentrada também poderiam ser consideradas. Em quaisquer casos, trata-se não somente de acesso à tecnologia, mas de indisponibilidade dos recursos e incentivos adequados à sua efetivação. Digamos que o governo eventualmente promova o acesso a tais tecnologias – por meio de isenção de tributos ou redução de barreiras alfandegárias, por exemplo. O conceito de adicionalidade deveria durar pelo tempo em que perdurar a respectiva barreira.

    Como colocamos acima, o importante aqui é verificar um impacto real a caminho da descarbonização. Demonstrar a adicionalidade não é nada simples e hoje existem diversos métodos que caminham para alguma consolidação. Dentro do mercado voluntário, algumas regras particulares; um mercado regulado abrangente que considere a fungibilidade de diversos créditos de descarbonização poderia ser o grande vetor da identificação da adicionalidade, com a definição de metas, setores e regras que assegurassem a credibilidade no processo. Propositalmente não nos ativemos a qualquer classificação rígida de adicionalidade porque tal mercado ainda não existe, sequer o mercado regulado do Artigo 6 do Acordo de Paris. Além disso, com base em sua finalidade – mitigação climática extraordinária, qualquer barreira, entrave, adversidade, a despeito da alguma classificação teórica, o projeto depender dos créditos de carbono para sua efetiva implantação, deveríamos considerar tal projeto como adicional.

    Vemos, sim, a possibilidade de adicionalidade em projetos de geração de energia renovável. Se no passado o crescimento ocorreu de forma orgânica, em razão da realidade geopolítica e de incentivos locais, temos hoje a oportunidade de alavancar os investimentos na geração de energia limpa com uso de modelos, tecnologia e estruturas inovadoras. Mesmo porque há projeções que indicam quase 90% da matriz elétrica global com energias renováveis em 2050. Hoje estamos próximos de 30% e inúmeros projetos em pipeline não serão rapidamente viabilizados por conta inclusive das diversas adversidades que apresentamos acima.

    O mercado de carbono vem ao encontro da viabilidade efetiva de projetos que sejam adicionais. Não se trata necessariamente de aumentar a rentabilidade de determinado projeto, há outras maneiras para tanto. Estamos tratando de soluções que, se não adotadas, fariam com que determinado projeto se mantenha inviável ou inexequível e não substitua os inúmeros projetos menos adequados. Estamos tratando aqui de liderar a descarbonização por meio de soluções inovadoras, senão disruptivas. E é interesse comum do setor assumir essa responsabilidade pela transição energética.


    *Rodrigo é advogado, professor e consultor em direito das mudanças climáticas. Formado em Direito pela UFSC, L.L.M pelo IBMEC e Executive MBA pela Fundação Dom Cabral. Professor em disciplinas como mudanças climáticas, sustentabilidade e financiamento de projetos do CEDIN e da FIA Business School. Com mais de 15 anos de experiência no setor de energias renováveis, atuou como Diretor Jurídico e membro de Conselhos e Comitês em companhias do setor. Atua como consultor do Rolim, Viotti, Goulart, Cardoso Advogados. É ainda mentor na LACLIMA – Latin American Climate Lawyers Initiative for Mobilizing Action.

    Referências

    Empresa de Pesquisa Energética (2021). Balanço Energético Nacional 50 anos: cinquenta anos de estatísticas energéticas. Disponível em < https://ben.epe.gov.br >.

    Prolo, C.D., Penido, G., Santos, I.T., & La Hoz Theuer, S. (2021). Explicando os mercados de carbono na era do Acordo de Paris. Rio de Janeiro: Instituto Clima e Sociedade. Disponível em <https://laclima.org/files/explicando-mercados-rev.pdf>.

    Schneider, Lambert; La Hoz Theuer, S (2019). Environmental integrity of international carbon market mechanisms under the Paris Agreement, Climate Policy. Disponível em <https://doi.org/10.1080/14693062.2018.1521332>.

    The World Bank (2016). Carbon Credits and Additionality: Past, Present, and Future. PMR Technical Note 13. Disponível em <https://openknowledge.worldbank.org/handle/10986 /24295>.

    The World Bank (2000). Ensuring environmental integrity under Article 6 mechanisms. World Bank Working Paper, Washington, DC. Disponível em <https://openknowledge.worldbank.org /handle/10986/35393>.

    UNFCCC (2015). Paris Agreement to the United Nations Framework Convention on Climate Change. Disponível em <https://unfccc.int/sites/default/files/english_paris_agreement.pdf>.

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